Home Notícias

O CINEMA BRASILEIRO E O FESTIVAL DE CANNES

POR PAULO PARANAGUA*

Após a chegada da invenção de Edison e da Luz ao Rio de Janeiro, o cinema tornou-se numa expressão da relação triangular incessantemente mantida pela cultura brasileira com a Europa e os Estados Unidos. A “belle époque”, os primeiros anos do século XX, foi totalmente virada para as modas vindas de Paris, do Filme de Arte e das divas italianas.

A Primeira Guerra Mundial tornou as trocas transatlânticas mais difíceis e favoreceu a implantação das Majors de Hollywood. O principal realizador brasileiro da primeira metade do século, Humberto Mauro, um auto-didacta das profundezas de Minas Gerais, assimila a nova linguagem visual esmiuçando os filmes de King Vidor e Henry King. Personalidade complexa, a qual o festival de Cannes homenageou em 1982, Mauro é ao mesmo tempo um “moderno”, com o bichinho da técnica e da electrónica, e um conservador ligado ao mundo rural e patriarcal ameaçado pela urbanização acelerada.

Quando saiu da sua província para se estabelecer no Rio de Janeiro, a então capital do país, vai misturar as suas influências, inspirando-se frequentemente no cinema europeu. A sua obra de arte, Ganga Bruta (1933), é um filme soberbamente híbrido, intenso, entre o mudo e um falar balbuciante. Foi ainda na Europa que Mauro se inspirou para o seu trabalho à frente do Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE). O debate europeu sobre o binómio cinema e educação e a actividade do Instituto Luce em Itália paira sobre o INCE, que favorece uma produção documental de qualidade. Mauro filma aí a série “Brasilianas”, ilustrando canções populares e melodias folclóricas, onde exprime livremente o seu lirismo.

No final da época dos filmes mudos, os filmes de Hollywood já dominavam o mercado local, mas não impediam que a vanguarda europeia estendesse a sua aura junto de uma elite. Dois Húngaros estabelecidos no Brasil, Rodolpho Rex Lustig e Adalberto Kemeny, tentam igualar Walther Ruttmann no seu documentário São Paulo, A Sinfonia da Metrópole (1929). Mário Peixoto, autor de uma obra absolutamente única, Limite (1930), auge dos filmes mudos latino-americanos, opõe-se às experiências mais arrojadas. Estigmatizado por Glauber Rocha, que não o tinha visto, Limite é, juntamente com Mauro, o exemplo das grandes esperanças que os brasileiros colocam no cinema para que revele as paisagens interiores e os vastos horizontes da sua época.

A revolução do cinema falado coincide com o desenvolvimento do nacionalismo cultural e a idade de ouro do populismo, incarnado por Getúlio Vargas (chefe de estado de 1930 a 1945, e depois de 1950 a 1954). Durante essa fase, a comédia musical vai buscar as suas melodias ao carnaval e o seu burlesco às variedades. A produção local alcança um sucesso inédito junto do público, que manifesta, de forma ruidosa, a sua empatia nas salas. Os comediantes Oscarito e Grande Otelo tornam-se estrelas. Durante muito tempo desprezadas pelas elites, estas “chanchadas” abordaram por vezes, de forma alegórica e paródica, a oscilação tipicamente brasileira entre os Estados Unidos e a Europa, entre a nova cultura de massa, popular, e a cultura erudita tradicional. Carnaval Atlântida (José Carlos Burle, 1952) ou De Vento Em Popa(Carlos Manga, 1957) são hoje em dia clássicos graças à revisão da história favorecida pelo falecido Paulo Emílio Salles Gomes, a alma da Cinemateca brasileira em São Paulo.

Depois da Segunda Guerra Mundial, a Europa incarna ao mesmo tempo o classicismo e a renovação. Paradoxalmente, a principal tentativa de adaptação do modelo de Hollywood jamais empreendida no país inspira-se em Cinecittà. Na verdade, os grandes estúdios Vera Cruz (1949-1954) são uma iniciativa da nova burguesia italo-brasileira de São Paulo. Alberto Cavalcanti aparece neste contexto como criança prodígio, aceitando trabalhar no seu país natal pela primeira vez após uma carreira iniciada em França e continuada na Grã-Bretanha com uma invenção e um eclectismo de boa qualidade. Apesar de sucessos locais, e mesmo internacionais, a Vera Cruz abre falência ao fim de cinco anos, vencida por pesadas realidades da economia cinematográfica.

Na altura, a contestação vem igualmente de Itália, pois o neo-realismo domina os debates dos clubes cinematográficos e das revistas e consegue colocar mais ou menos de acordo comunistas e católicos, antes de incarnar em Nelson Pereira dos Santos: Rio 40° (1955) e Rio Zona Norte (1957), por ele realizados, bem como O Grande Momento (1958), por ele produzido e encenado por Roberto Santos em São Paulo, representam uma alternativa de expressão e produção para a nova geração.

Depois, o jovem cinema e as novas vagas sucedem-se em todos os continentes e instauram um diálogo sem igual entre os criadores de diversos países. O triângulo transatlântico encontra ecos no Japão, cujos filmes encantam os cinéfilos brasileiros que aproveitam a existência de uma forte comunidade japonesa em São Paulo. O “Cinema Novo” discute portanto, de igual para igual, com as formulações e as modalidades que vêm dos Estados Unidos, da Europa ou de outros locais. Este movimento colectivo reagrupa personalidades tão diversas quanto Glauber Rocha, Ruy Guerra, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Carlos Diegues, Eduardo Coutinho.

Confira essa e outras notícias no site do Festival de Cannes.